sábado, 30 de abril de 2011

Salmo

cobriu-lhe os seios de
trevos, para dar sorte, e
pintou-lhe as
unhas de escarlate

na cama de deus
dormirá, hoje, uma mulher bonita.

Renata Correia Botelho, "Avulsos, por causa", Língua Morta, 2010

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Não se desfloram capões no sânscrito do dia,
seja a questão columbófila o supremo fenómeno
ou haja umas escadas a subir para o lado poeta
dessa cidade perdida, agora entregue às lojas chinesas,
onde nenhuma aurora há.

Amadeu Baptista, "O Ano da Morte de José Saramago", &Etc, 2010

domingo, 24 de abril de 2011

O DESERTO

A cada instante ladeio
a malha entre dois passos
na teia (que orbe!)
duma aranha sesga.
Por cântico fúnebre,
apenas o silêncio audível;
as notas fluem na aérea
ausência de pauta.
Dar a esta caligrafia
a incisão
de um dorso de camelo,
bossa a bossa ondeando
contra a face da lua.
E em meu lábio
deixar às aves
as sílabas mais tenras.

Sebastião Alba, "A Noite Dividida", Assírio & Alvim, 1996

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Primavera

Na Primavera, os marmeleiros
da Cidónia, regados pelas correntes
dos rios, lá onde das Virgens
está o puro jardim; e os pâmpanos
a crescerem sob folhagens sombrias,
rebentos de vinha. Mas para mim o amor
não descansa em nenhuma estação;
ardendo sob o relâmpago
como o Bóreas da Trácia,
lança-se de junto de Cípris com sedentas
insânias, tenebroso, desavergonhado,
e com força, de cima a baixo, sacode
o meu espírito.

Íbico

Amadeu Baptista na blogosfera.

Amadeu Baptista chegou, finalmente, à blogosfera.

Com uma bibliografia documentada desde o seu primeiro livro - As Passagens Secretas -, vale a pena ver e seguir de perto.

Além das capas dos livros e de, pelo menos, um poema de cada, poderão ainda ver a mão que Amadeu tem para a fotografia.

OUTUBRO

O outono já chamou a recolher,
obedecem os caminhos,
os ossos e o mundo.

Ao leme da memória,
os olhos em jejum, viro costas
à indústria dos escombros.
Atiro leve rede
para o lado que me foge.

Sob esta condição,
a difícil barricada das estantes
protege-me do bem
e dos gritos ao telefone.

José Miguel Silva, "O Sino de Areia", Gilgamesh, 1999.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

BUT NOT FOR ME (BILLIE HOLIDAY)

Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.

Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.

E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.

Manuel de Freitas, "[SIC]", Assírio & Alvim, 2002

quarta-feira, 20 de abril de 2011

«Mas a cortina poderá cair agora.»

«Um quarto
vazio, um cobertor
emprestado, um único
copo: a cenografia
do amor, peça
em um acto.»

Rui Pires Cabral, "Oráculos de Cabeceira", Averno, 2009.

terça-feira, 19 de abril de 2011

A Mão do Oleiro

«morte:

a mancha negra do corpo, sobre a cama
as mãos que o tempo, anónimo, fixou.
No quintal, os carpinteiros juntam prancha a prancha com o som
enquanto os cães
esperam a fome, cheios de paciência.
Lá dentro, o morto desenha o esquecimento
e a casa fica impenetrável.
Contra a porta, o vento
junta folhas, terra, vespas secas.
O vento e o seu gume.
Os corvos na lixeira retomam a guerra
em curtos voos que a fome desorganiza.»

Rui Nunes, "A Mão do Oleiro", Relógio D'Água, 2011.